


Role para ler





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Livros & flores
Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?
Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?
Machado de Assis
Falenas. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1870.
Na pulsante metrópole de São Paulo, onde mais de 12 milhões de habitantes se cruzam diariamente entre trens, ônibus e calçadas superlotadas, a leitura ainda enfrenta um paradoxo. Nunca houve tanto acesso à informação e nunca o hábito de ler esteve tão ameaçado. Em meio ao ritmo acelerado da cidade, tomar um livro nas mãos pode se tornar um ato de rebeldia contra a lógica da pressa, da produtividade constante e das telas que disputam a atenção de todos a cada segundo.
Ainda assim, embora São Paulo concentre a maior indústria editorial do país, grandes feiras literárias, livrarias históricas, bibliotecas equipadas e uma das maiores redes culturais da América Latina, isso não se traduz automaticamente em hábito de leitura ou formação crítica de leitores. O livro existe, mas para quem ele chega?
Os números ajudam a entender o tamanho do desafio. Segundo o Censo 2022 do IBGE, a taxa de analfabetismo no Brasil caiu para 7% entre pessoas com 15 anos ou mais, eram 9,6% em 2010. Um avanço importante. Ainda assim, o mesmo levantamento mostra que mais de 11 milhões de brasileiros permanecem sem conseguir ler ou escrever um bilhete simples.
E mesmo entre aqueles que sabem ler, a compreensão nem sempre acompanha a decodificação das palavras. De acordo com o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf, 2025), três em cada dez brasileiros entre 15 e 64 anos são considerados analfabetos funcionais, leem, mas não compreendem plenamente o significado do texto nem conseguem usar a leitura para resolver situações do cotidiano.




Na pulsante metrópole de São Paulo, onde mais de 12 milhões de habitantes se cruzam diariamente entre trens, ônibus e calçadas superlotadas, a leitura ainda enfrenta um paradoxo. Nunca houve tanto acesso à informação e nunca o hábito de ler esteve tão ameaçado. Em meio ao ritmo acelerado da cidade, tomar um livro nas mãos pode se tornar um ato de rebeldia contra a lógica da pressa, da produtividade constante e das telas que disputam a atenção de todos a cada segundo.
Ainda assim, embora São Paulo concentre a maior indústria editorial do país, grandes feiras literárias, livrarias históricas, bibliotecas equipadas e uma das maiores redes culturais da América Latina, isso não se traduz automaticamente em hábito de leitura ou formação crítica de leitores. O livro existe, mas para quem ele chega?
Os números ajudam a entender o tamanho do desafio. Segundo o Censo 2022 do IBGE, a taxa de analfabetismo no Brasil caiu para 7% entre pessoas com 15 anos ou mais. Em 2010, eram 9,6%. Um avanço importante. Ainda assim, o mesmo levantamento mostra que mais de 11 milhões de brasileiros permanecem sem conseguir ler ou escrever um simples bilhete.
E mesmo entre aqueles que sabem ler, a compreensão nem sempre acompanha a decodificação das palavras. De acordo com o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) de 2025, três em cada dez brasileiros entre 15 e 64 anos são considerados analfabetos funcionais: leem, mas não compreendem plenamente o significado do texto, nem conseguem usar a leitura para resolver situações do cotidiano.


Além disso, o interesse pela leitura está caindo de forma preocupante. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada em 2024 pelo Instituto Pró-Livro, mostra que o percentual de brasileiros que afirmam gostar de ler caiu de 31% em 2019 para 26% em 2024. Na direção oposta, cresceu de 22% para 29% o número de pessoas que declaram simplesmente não gostar de ler, um movimento que reforça um afastamento progressivo da experiência literária.
A mesma pesquisa revela ainda que 53% dos brasileiros não leram nenhum trecho de livro, impresso ou digital nos três meses anteriores à entrevista, dado que expõe uma ruptura cada vez maior entre o cotidiano e o hábito da leitura. Entre as justificativas recorrentes para esse afastamento, aparecem fatores como dificuldade de compreensão e de concentração, além da falta de paciência, sintomas de um tempo fragmentado, acelerado e saturado de estímulos.

As desigualdades sociais também atravessam o acesso à leitura de forma brutal. O Censo 2022 registrou que pessoas pretas e pardas têm índices de analfabetismo duas vezes maiores que os de pessoas brancas, respectivamente 10,1% e 8,8% contra 4,3%. O recorte de renda é igualmente impactante: famílias com renda inferior a dois salários mínimos leem até quatro vezes menos do que aquelas com renda superior a cinco salários. Não é apenas um abismo estatístico, mas cultural, histórico e territorial.
Essas discrepâncias não se restringem ao número de leitores. Elas se estendem à qualidade e às formas de contato com o livro ao longo da vida. Enquanto parte da população frequenta livrarias, bibliotecas modernas e clubes de leitura com eventos e curadoria literária, outra depende de doações esporádicas, acervos desatualizados ou da simples inexistência de espaços culturais nos bairros. Em muitas periferias, não é a falta de interesse que afasta leitores, mas a ausência de oportunidades reais, livros, tempo, segurança e silêncio. Em um país onde o acesso cultural raramente é distribuído de forma igualitária, ler, ainda hoje continua sendo antes um privilégio do que um direito.
Diante desse cenário, iniciativas públicas voltadas à democratização do acesso ao livro deixam de ser apenas políticas culturais e passam a ser políticas de sobrevivência intelectual. Programas de leitura nas escolas, ampliação de bibliotecas comunitárias, editais de distribuição gratuita de obras e ações como o PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático), quando bem executados, já demonstraram impacto direto na redução do analfabetismo funcional e no fortalecimento de repertório. Apesar das evidências, o investimento segue oscilante e frequentemente capturado por disputas ideológicas que descolam a educação da vida real. Se a escola é a primeira e, para muitos, o único espaço de contato com o livro, não há como esperar avanços estruturais enquanto a leitura seguir tratada como luxo curricular. A pergunta que se impõe é menos “será que funciona?” e mais “por que o país insiste em não levar adiante aquilo que comprovadamente funciona?”. É difícil crer em um país que promete futuro enquanto hesita em financiar a única ferramenta capaz de fabricá-lo: a educação crítica, leitora e emancipadora.
Ler, portanto, não é apenas uma escolha individual, é um direito condicionado por acesso, tempo disponível, acolhimento e políticas públicas consistentes. Onde faltam esses elementos, faltam leitores, não por vontade, mas por impossibilidade.
Em São Paulo, esse contraste é evidente. Enquanto parte da população consome livros nos intervalos do metrô, em cafés de livrarias de rua ou nos amplos centros culturais da região central, milhares sequer têm uma biblioteca próxima ao bairro. O feixe de possibilidades culturais se concentra nas zonas ricas, enquanto as periferias convivem com equipamentos fechados, acervos defasados e trajetos cansativos até um espaço minimamente adequado para estudar, pesquisar ou simplesmente folhear um livro em paz. A geografia do acesso à cultura revela também a geografia da desigualdade.
Mas o cenário não se resume às dificuldades. Há resistência. Em contraponto à dissidência nacional da leitura, iniciativas públicas e comunitárias surgem como faróis em meio ao mar de propaganda e de rotina exaustiva. Bosques de leitura convidam ao descanso e ao encontro com os livros em meio ao concreto, ônibus-biblioteca levam o conhecimento a quem não pode chegar até ele, saraus transformam a palavra em pertencimento e mobilizam coletividades, bibliotecas temáticas se reinventam para dialogar com diferentes públicos, pontos autônomos de leitura espalham livros em bairros inteiros e criam uma rede silenciosa de cuidado e partilha.
No sarau, a poesia vira voz e dá espaço para que todos participem. Nos bosques, o livro encontra descanso no meio do caos urbano. Nos ônibus de leitura, o conhecimento se desloca pelos lugares onde mais se precisa. Em bibliotecas como a Mário de Andrade, a São Paulo que lê, se encontra com a São Paulo que quer aprender a ler melhor. Ler, aqui, é ato que ultrapassa o lazer, é forma de existir, de ocupar, de reivindicar espaço na cidade, é instrumento de cidadania.
Por isso, a pergunta que dá título a esta reportagem não tem resposta simples. São Paulo lê?
Sim. Mas poderia ler muito mais.
Sim. Mas nem todos podem ler como deveriam.
Sim. Mas ainda há páginas inteiras a serem escritas.
Este especial se propõe a percorrer cinco trajetos dessa relação com o livro na capital. Cada capítulo vai revelar não apenas números, mas pessoas. Histórias de quem lê no ônibus, na pausa do almoço, na fila do emprego, no meio da rodoviária. De crianças que descobrem as primeiras letras como quem descobre o mundo, de adultos que encontram na leitura um abrigo mental depois de longos turnos de trabalho. Porque, no fim das contas, a cidade não é feita só de prédios, é feita de narrativas.
Ao acompanhar as próximas matérias deste especial, você poderá não apenas conhecer essas iniciativas, mas experimentá-las. Quem sabe a leitura que começa nas próximas linhas termine em um dos bosques, ônibus, bibliotecas ou saraus desta cidade que insiste em contar suas histórias? Afinal, para que São Paulo seja, de fato, uma cidade que lê, falta apenas uma coisa: que alguém abra o próximo livro e não feche mais as portas que ele abrirá.

A São Paulo que lê?
A crise da leitura escancara o abismo social. Quando a educação falha, não é apenas o texto que deixa de ser compreendido, é o mundo
Por: Rafaella Montenegro

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Linhas & letrinhas
Tem livro que é bem grosso
Tem livro que é de bolso
Tem livro que é curioso
E faz bem pra mim
Tem livro de relato
Tem livro que é um barato
Monteiro lobato é bem assim
Até pra tirar soneca é gostoso de ler
Basta entrar na biblioteca e escolher.
Palavra Cantada
O Sonho Virou Canção. São Paulo, 1997.





Biblioteca Hans Christian Andersen mantém vivo o hábito da leitura na zona leste de SP
Mesmo com queda no número de visitantes, espaço aposta em programação cultural, vínculos afetivos e mediação de histórias para formar leitores de diferentes gerações
Por: Fábia Medeiros

Nasci nos anos 50, na mesma época em que as obras de Monteiro Lobato ganharam repercussão e se popularizaram com seus livros infanto-juvenis. São Paulo passava por uma explosão de inaugurações de locais iguais a mim. Ganhei mais de dez irmãs.
Até me tornar o que sou atualmente, fui batizada com diversos nomes, até que, em 2016, finalmente me tornei a Biblioteca Pública Municipal Infanto Juvenil Hans Christian Andersen. No bairro, todos me chamam simplesmente de “Hans”. E, embora as placas e as ruas que cercam tenham mudado, o meu propósito permaneceu o mesmo: aproximar crianças e adultos dos livros.

Patrono Hans Christian Andersen
Foto: Fábia Medeiros | Ano: 2025
Meu nome é uma homenagem ao escritor dinamarquês, famoso por criar príncipes, patos e pequenas sereias. Ele foi escolhido para identificar um refúgio onde a imaginação pudesse resistir ao concreto que se erguia ao meu redor.
À época, o bairro do Tatuapé esperava pela urbanização que crescia na cidade da garoa. Lenyra Fraccaroli, chefe da Divisão de Bibliotecas Infantojuvenis do Estado de São Paulo, começou a me desenhar como aquilo que viria a ser a primeira biblioteca da zona leste.
Apesar da minha vocação para a leitura, meus números recentes, porém, contam outra história. De acordo com o relatório “Bibliotecas em Números”, da Prefeitura de São Paulo, meu público diminuiu 3,55% entre 2023 e 2024, de 36.594 para 35.295 visitantes.
A queda, ainda que pequena, acompanha a tendência observada em todo o estado. Segundo a pesquisa “Retratos da Leitura”, realizada em 2024 pelo Instituto Pró-Livro, com apoio da CBL (Câmara Brasileira do Livro) e do SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros), o número de leitores no estado de São Paulo caiu de 51% para 46% no período entre 2019 e 2024.
No entanto, em minhas instalações, eu sinto que o cenário é outro. Paredes coloridas, tapetes felpudos espalhados e uma programação que parece respirar. A coordenadora Elisângela Alves Silva, a Elis, como todos a chamam, está comigo há dez anos, sempre atenta e buscando maneiras de me manter cheia de vida. Entre prateleiras e cartazes, a estratégia é resistir, atrair e manter o público frequentador.
“Assim, a gente acaba colocando uma programação cultural bem diversificada, na tentativa de fisgar os leitores e os não leitores que também frequentam o nosso espaço”, explica, com a serenidade de quem sabe que a literatura, às vezes, precisa ser disfarçada de festa.
Elis conta que faz questão de variar as minhas atividades, com oficinas de contação de histórias, bordado, encontros de famílias nos programas PIA (Programa de Iniciação Artística) e PIAPI (Programa de Iniciação Artística para a Primeira Infância), exposições, saraus e promove a minha festa literária, a FLIHANS. Eu sou uma espécie de ecossistema da imaginação em meio ao concreto.
“A programação precisa conversar com quem já ama o livro e com quem ainda não o descobriu”, diz ela.

Cordenadora Elisângela Alves Silva
Foto: Fábia Medeiros | Ano: 2025
O presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), Alexandre Martins Fontes, observa que a lógica não é diferente nas livrarias. Ele vê espaços iguais a mim, uma biblioteca, irmã de vocação das livrarias e sempre cria mecanismos para “prender” a atenção do seu público, que vão além da leitura de livros.
“As bibliotecas públicas são espaços fundamentais para a democratização do acesso ao livro e para a formação de leitores. São ambientes complementares: as bibliotecas estimulam o primeiro contato com a leitura, e as livrarias ampliam esse vínculo”, afirma.
Eu, a Biblioteca Hans, sigo ali, entre as árvores de uma pracinha charmosa, guardando um pedaço da infância da cidade. As histórias continuam nas minhas estantes, à espera de quem ainda acredita que um livro pode mudar o rumo de um bairro.


O reino das crianças
Aos sábados, torno-me reino. Minhas raízes modernistas dos anos 1950 se enchem de correria, risos e perguntas. Entre meus visitantes estão Ana, Lara, Lorena e Marcelo, crianças de olhos brilhantes, habitantes naturais de meus corredores.
Ana, 7 anos, participante do PIA, adora brincar pelos meus espaços e descobrir “lugares secretos”.
“Eu gosto de livros que as figuras saltam. O que eu mais gosto é da Rapunzel porque eu quero ter os cabelos do tamanho dos dela”, diz.

Ana e seus pais (Suzane e William)
Foto: Fábia Medeiros | Ano: 2025
Lara, 3 anos, é dos quadrinhos e das borboletas. “Eu gosto de brincar. Eu gosto de ler livros. Eu gosto (de livros) da borboleta”, explica.
O pai, Lair Crispim, olha para mim e vê mais que livros: “Assistindo a um evento na Hans, eu talvez seja fruto do racismo ambiental porque vivia na periferia. E vejo que o único caminho para que a gente possa sair desse sistema é por meio dos estudos, e a biblioteca é a chave, onde você tem acesso aos livros”, afirma.

Lara e Lair Crispim (pai)
Foto: Fábia Medeiros | Ano: 2025
Marcelo, 7 anos, gosta de História e de artesanato. Fala sobre a Peste Negra como quem descobre o mundo pela lupa dos detalhes.
“Os médicos da peste usavam máscara com um bico grande para não sentir o cheiro das pessoas doentes. Isso eu aprendi nos livros”, conta.
Ivone, sua mãe, revive ali a própria infância: “Eu tenho uma relação com a biblioteca desde criança. Era um tempo que não tinha internet, a televisão era restrita. Eu usava o espaço para tudo, não só para leitura como para trabalhos da escola e da faculdade. Sou cria desse lugar”, recorda.

Marcelo e Ivone (mãe)
Foto: Fábia Medeiros | Ano: 2025
Lorena, 4 anos, dona de longos cabelos anelados com lacinhos rosas, me descobriu por indicação dos amiguinhos da escola que estuda.
“Eu gosto mais de ler contos de fadas, das princesas da Disney, Rapunzel, Princesa Adormecida (Bela Adormecida), Princesa Sapo (Tiana, do filme, A Princesa e o Sapo) e da Cinderela”, afirma.
A menina dos cabelos anelados fez parte da oficina de contação de histórias e levou para casa um livro da princesa Ariel, criatura saída da imaginação do autor que dá nome a mim.

Lorena e sua mãe, com fantoches feitos na Hans
Foto: Fábia Medeiros | Ano: 2025
O conto da família Arnone
Eu, Biblioteca Hans Christian Andersen, carrego muitas histórias. Algumas nasceram nas minhas estantes; outras chegam prontas, entregues por quem me atravessa como quem reencontra um velho amigo. Entre essas histórias, existe uma que me acompanha há décadas, quase um casamento.
O casal Nelson Arnone, 74, e Emília Separovic Arnone, 78, mantém comigo uma relação que envelheceu junto com minha própria arquitetura modernista. É um vínculo que começou como hábito, virou afeto e hoje já se estende por três gerações. O bordão “felizes para sempre”, tão comum nos contos que abrigo, parece ter escapado das páginas e se instalado na família Arnone.
Nelson, bancário aposentado, sempre me visita com o cuidado de quem retorna ao lar. Ele recorda que me conheceu por incentivo dos professores. O que começou como dever virou hábito; o hábito, herança. Raquel, filha única, recebeu do pai o gosto pela leitura como quem herdasse um bem silencioso e eterno.
“Começamos em casa comprando os livrinhos didáticos, para colorir, que tinham uma mensagem positiva para crianças. Quando a Raquel cresceu, incentivamos que ela frequentasse a biblioteca. Nós somos sortudos por morarmos perto de duas bibliotecas”, recorda.
Raquel Arnone M. Rosa cresceu comigo. Hoje é advogada, funcionária pública do Estado, casada com William Arnone M. Rosa, professor de educação física. É mãe de três: Miá e Liz, gêmeas de 5 anos, e Dom, de 7, menino de olhos claros herdados da mãe. Ela credita ao pai, seu Nelson, a escolha pela advocacia e a mim, a paciência que aprendeu nas tardes de estudo entre minhas prateleiras.
Ela volta no tempo com precisão: “A gente tem um carinho muito grande pela Hans. Desde muito pequena tenho memória do meu pai me trazendo aqui, quando ainda era lugar de completo silêncio. Então, eu lembro de nós passarmos pelos corredores onde havia os livros infantis e aquela tranquilidade”.
Emília, a mãe, reforça que, mesmo no tempo das telas, ainda há quem prefira o toque das páginas.
“Eu estava no metrô e me chamou atenção uma moça lendo um livro. Eu achei muito interessante ela em pé lendo”, diz, admirada.
Vozes que me dão vida
Entre os meus corredores, duas presenças ajudam a me manter viva: Genovaite Martinaitis, assistente social, e Cláudia Dér, atriz. São minhas contadoras de histórias, as vozes que me preenchem.
Genovaite chegou a mim como aluna de uma oficina de Contação de Histórias. Queria apenas aprender a ler de forma mais expressiva. Não sabia que esse pequeno desejo abriria nela um novo horizonte.
“Cheguei à Hans como aluna. Esse curso para mim foi um divisor de águas”, recorda.
O aprendizado virou ofício, e o ofício, casa. Genovaite é voluntária e parte do meu cotidiano, ajudando a transformar histórias em encontros.
Cláudia, por sua vez, me conheceu criança, quando ainda era vizinha. Ela se lembra da minha quietude antiga, quase sagrada. Anos depois, adulta, retornou em busca de algo que a reconectar se à arte:
“Em 2013, estava à procura de algo para fazer, a vida de atriz estava meio difícil, e procurei e pensei: ‘Ah, vou contar história’. E achei a formação”, resume.
O curso reacendeu nela o impulso de criar. Ela apresentou à Prefeitura um projeto de leitura o qual foi aprovado. Poderia ter ido para qualquer biblioteca. Preferiu a mim.
Cláudia é minha oficineira. Aquela quietude que a encantava virou o som das vozes infantis que ecoam através dela.
A memória que resiste
Sou feita de livros, mas vivo de pessoas. Pais, filhos, estudantes, contadores de histórias: cada um deixa em mim um capítulo que não cabe nas estantes. Sou memória coletiva e o tempo não me apaga.
E sigo cumprindo meu destino: ser o lugar onde histórias acontecem antes, durante e depois de serem lidas.
Biblioteca Pública Municipal Hans Christian Andersen
Endereço: Avenida Celso Garcia, 4142 - Tatuapé, 03064-000, São Paulo - SP.
Tel.: (11) 2295-3447 | (11) 95920-1389
E-mail: bcsp.hcandersen@prefeitura.sp.gov.br
Horário: 2ª a 6ª das 10h às 19h, sábado das 10h às 14h.
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Tecendo a manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
João Cabral de Melo Neto
A Educação pela Pedra. Rio de Janeiro, 1966.






Uma invasão permitida:
quando o silêncio se transforma em vida
Coletivos de leitura, reuniões dentro de bibliotecas que transformam o empréstimo de livros em encontros sociais
Por: Rafael Rocchis
Eu não tenho corpo, mas sinto calor. Um calor sufocante, metálico, como se estivesse preso dentro de um tanque de aço sob o sol inclemente do deserto na fronteira do Kuwait. Meus pulmões queimam, o ar falta e o silêncio é a única coisa que me separa da morte.
No entanto, se alguém entrasse agora na sala envidraçada da Biblioteca Álvaro Guerra, no coração de Pinheiros, sentiria apenas o frescor artificial e tranquilo do ar-condicionado.
Eu sou o Coletivo de Leitura. Alguns me chamam de "roda", outros de "clube". Eu não tenho RG, não consto na folha de pagamento da Prefeitura e, muitas vezes, sou invisível para a burocracia estatal. Apesar disso, eu existo. Nasci de uma simplicidade que a própria Márcia, minha criadora, tenta explicar:
"A biblioteca já estava aqui, os livros estavam aqui, mas faltava gente conversando. Não foi um plano mirabolante, foi uma conversa de corredor".
Aqui eu ganho vida na boca e nos ouvidos de Márcia e outras quinze pessoas, a maioria com mais de 60 anos, que puxam cadeiras de madeira e se reúnem em volta de uma mesa, cada um com seu livro na mão, para quebrar a regra mais sagrada de uma biblioteca: o silêncio.
"É um ambiente tranquilo, mas não muito silencioso", Márcia sorri enquanto a mesa se enche de café e pão de queijo. "Às vezes acabamos nos agitando um pouco mais com o debate, mas é uma energia boa... você vê como todos ali gostam disso".
Naquela tarde, eu não era apenas um grupo de idosos em um bairro nobre de São Paulo. Eu era a angústia de três refugiados palestinos em 1963. Líamos e debatíamos a obra de Ghassan Kanafani, sobre homens que tentam atravessar uma fronteira escondidos dentro de um caminhão-pipa vazio e acabam morrendo sufocados pelo calor, sem coragem de bater na lataria para pedir socorro.
"É um livro bem pesado, mas necessário. É antigo, mas parece que foi escrito ontem".

Na roda, alguém pergunta: "Por que eles não gritaram?". Aqui eles debatem sobre uma obra de mais de 60 anos, mas que ainda hoje é atual e sangra nos nossos noticiários diários. É nesse momento que eu aconteço. A emoção de um vira a lágrima do outro. O clássico antigo se mistura com a manchete de hoje. A biblioteca, que serve para guardar livros, de repente serve para guardar vidas.
Minha personalidade muda conforme o teto que me abriga

Entrada principal, Parque Villa-Lobos, Alto de Pinheiros, São Paulo.
Foto: Rafael Rocchi | Ano: 2025
Na imponente Biblioteca Parque Villa-Lobos, minha postura muda. Sou gerido pelo Estado, sou grande, brutalista e belo. Aqui, não me escondo em salas pequenas, ocupo o centro do palco, debaixo de uma imensa estrutura de tecido branco que flutua no saguão como uma vela de barco. Olho para cima e vejo a luz do sol dando vida ao espaço, e ao meu redor, paredes escuras estampadas com nebulosas e galáxias me lembram que o universo é vasto, mas é ali, na roda de conversa, que o meu mundo gira.
Lá, minha agenda é cheia e tenho duas faces. Numa tarde, serei a fatalidade de Gabriel García Márquez em "Crônica de Uma Morte Anunciada" com o Clube +60. Dois dias depois, rejuvenesço para encarar o vazio contemporâneo de Natalia Timerman em "Copo Vazio". Tudo isso acontece enquanto respiro o ar puro da Zona Oeste, cercado pelo verde de um parque arborizado que me abraça, onde as páginas dos meus livros se viram com o vento que vem de fora.



Biblioteca do Parque Villa-Lobos, Alto de Pinheiros, São Paulo.
Foto: Rafael Rocchi | Ano: 2025
Refúgio de concreto
Já na Biblioteca Alceu Amoroso Lima, também em Pinheiros, sou um gigante tímido. Apesar de ser vizinho da barulhenta Rua Henrique Schaumann, me escondo atrás de um jardim denso e de uma fachada de concreto marcada por grafites e poesia urbana. Por dentro, não tenho degraus, sou cortado por longas rampas suspensas que flutuam no vão livre e integram meus quatro andares.
Biblioteca Alceu Amoroso Lima, Pinheiros, São Paulo.
Foto: Rafael Rocchi | Ano: 2025
Foi lá no alto, em um espaço amplo banhado pela luz natural, que pude escutar uma forma diferente de ser lido. Havia um grupo grande de idosos, mas não folheavam páginas de papel. Eles liam a própria mente. Repetiam frases em voz alta, num treino de memória que parecia um jogral contra o esquecimento. Mesmo sem ser um clube de leitura oficial, eu também estava ali, pulsando na palavra usada como ferramenta para não esquecer de existir.
A hora da estrela
E na Biblioteca Clarice Lispector? Até ontem, eu sentia uma dor fantasma ao procurar meu corpo lá e não encontrar. O cenário estava montado para a minha chegada. Vi a máquina de escrever azul sobre a mesa, parada, esperando dedos que não fossem de um fantasma. Vi a própria Clarice, esculpida em tamanho real, me observando no canto da sala com seus olhos de mistério, como quem pergunta: "Você não vem?".
Biblioteca Pública Clarice Lispector, Vila Romana, São Paulo.
Foto: Rafael Rocchi | Ano: 2025
Nas estantes, meus livros favoritos: A Paixão Segundo G.H., A Cidade Sitiada. Dormindo, esperando para ser desvendado por uma roda de amigos.
Foi quando encontrei a Guardiã daquele espaço. Por um capricho do destino, ou porque toda mãe de coletivo parece ter o mesmo nome, ela é xará da minha criadora lá de Pinheiros. Ela não pôde me oferecer uma cadeira na roda, porque a roda ainda não existe.
Mas houve uma pontada de esperança. Ao falar sobre a ausência, ela confessou um desejo. O plano existe. A vontade de quebrar o silêncio da Lapa existe. Ali, diante da linha do tempo da escritora na parede, percebi que a dor virou semente. Eu ainda não nasci lá, mas já fui desejado. E como diria a dona da casa:
“Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho”. O trabalho dela vai começar. A minha estreia é questão de tempo.
De volta à Álvaro Guerra, a Márcia diz que mês que vem vamos para a Londres vitoriana ler contos de Charles Dickens. Vamos trocar o deserto do caminhão-pipa pela neve inglesa. Mas a verdade, que talvez nem eles saibam, é que não buscam apenas histórias. Estão aqui porque, quando a roda se forma, a solidão individual se dilui.
"A velhice muitas vezes é solitária e aqui acaba virando uma roda de amigos. Sinto que a gente está resistindo. Num mundo onde todo mundo só olha pro celular, ver 15 pessoas discutindo literatura... sinto que a gente ainda tem muito o que falar".
Enquanto houver uma cadeira puxada e um livro ou uma memória aberta sobre a mesa, eu sou a resistência que respira.
Biblioteca Álvaro Guerra
Endereço: Av. Pedroso de Morais, 1919 - Pinheiros, 05419-001, São Paulo - SP
Tel.: (11) 3031-7784
E-mail: bcsp.aguerra@prefeitura.sp
Horário: 2ª a 6ª das 9h às 18h; sábado das 10h às 14h. Fechado nos feriados e emendas conforme calendário da prefeitura de São Paulo.
Biblioteca Parque Villa-Lobos
Endereço: Av. Queiroz Filho, 1205 - Parque Villa- Lobos - Alto de Pinheiros, 05319-000, São Paulo - SP.
Tel.: (11) 3024-2500
E-mail: contato@bvl.org.br
Site: https://bvl.org.br/
Horário: de terça a domingo e feriados, das 9h30 às 18h30. Fechada nos dias 24, 25 e 31 de dezembro, 1º de janeiro e terça de carnaval. Entrada gratuita.
Biblioteca Alceu Amoroso Lima
Endereço: Rua Henrique Schaumann, 777 - Pinheiros, 05413-060, São Paulo - SP.
Tel.: (11) 3082-5023
E-mail: bcsp.aalima@prefeitura.sp.gov.br
Horário: 2ª a 6ª das 10h às 19h; sábado das 10h às 14h. Fechado nos feriados e emendas conforme calendário da prefeitura de São Paulo.
Biblioteca Pública Clarice Lispector
Endereço: Rua Jaricunas, 458 - Vila Romana, 05053-070, São Paulo - SP.
Tel.: (11) 3672-1423
E-mail: bcsp.clispector@prefeitura.sp.gov.br
Horário: 2ª a 6ª das 9h às 18h; sábado das 10h às 14h. Fechado nos feriados e emendas conforme calendário da prefeitura de São Paulo.




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Navegar pela leitura
Navegar pela leitura é preciso
Traz emoção, sonho, destino
Nos aventurando no paraíso
Do fingidor, do sábio, do divino
Inspiradas no poder conciso
Da junção grifada no livro.
Tente! Experimente!
Assim, sem qualquer compromisso
Se deixando levar pela mente
Mergulhada na imaginação
E não mais que de repente
Vai estar apaixonado pela composição...
De corpo e alma ao ter o livro nas mãos.
Luciano Spagnol


Quando a arte embarca:
o sarau que acontece no Terminal Tietê
Uma vez por mês, o centro pulsante de deslocamentos ganha outro ritmo, o da palavra, da música e de quem descobre a poesia pela primeira vez
Por: Rafaella Montenegro
Eu nasci de um desejo que veio antes de mim. Antes de eu existir, havia um espetáculo chamado “Os Conversadores”, poesia e música misturadas como um show de música falada. Ele foi criado em 2008 por Edson Tubinaga, Cacá Mendes, Patrícia Casadei e Tony Fernandes, que também se tornou meu produtor. Durante um bom tempo, eles rodaram com o espetáculo, levando suas vozes e versos para diferentes lugares, até que perceberam um limite. O público já os conhecia, os amigos já tinham assistido, os caminhos estavam ficando estreitos demais para o tamanho da arte que carregavam.
Foi então que eu comecei a ser sonhado.
A ideia era simples e ousada ao mesmo tempo: e se existisse um sarau? Um espaço aberto, onde mais pessoas pudessem participar, criar, trocar? Um lugar que reunisse o público naturalmente e, ao mesmo tempo, funcionasse como vitrine para o espetáculo original. Nasci desse pensamento, dessa vontade de ampliar, de compartilhar, de fazer girar.
Mas para existir, eu precisava de um lar.
Foram meses de conversas com a Livraria da Vila, até que finalmente acreditaram no projeto. E assim eu estreei o Sarau dos Conversadores na unidade da Livraria da Vila da Alameda Lorena, lá nos Jardins.
A minha primeira noite aconteceu em 19 de junho de 2013.
Foi quando eu respirei pela primeira vez.
Quando as vozes se encontraram.
Quando percebi que eu não era só um evento eu era um encontro coletivo de poesia, música, histórias e afeto.
E desde então, sou isso:
um espaço onde a palavra tem casa,
onde quem chega pertence,
onde a arte se expande e ninguém fica de fora.
Eu sempre fui um lugar para aquilo que não cabe na grande mídia. Aqui, a poesia, a música, o teatro, a dança e todas as formas de arte que cabem no corpo e na palavra encontram abrigo. Sou uma vitrine para artistas que quase nunca têm vitrine, gente talentosa que não aparece, que não “viraliza”, que não encontra espaço nos veículos tradicionais e talvez nem encontre. Eu existo para abrir portas onde não existem portas.
Esse é o meu propósito desde o começo: ser espaço para quem não tem espaço.
Ao longo da minha história, caminhei muito. Passei por livrarias, bibliotecas e diversos centros culturais durante mais de 11 anos de existência. Cada novo endereço ampliava a minha voz mas algo ainda faltava. Eu precisava me aproximar de um público maior, mais diverso, mais real. Eu queria conversar com quem normalmente não chegaria até mim, pessoas que talvez nunca fossem a um sarau, que talvez nunca lessem um livro, que talvez nunca parassem para ouvir uma boa música.
Foi assim que cheguei ao Terminal Tietê.
Depois de tantos anos em espaços culturais tradicionais, senti que era hora de ocupar um lugar mais popular, mais pulsante. Existem muitos saraus em São Paulo, talvez mais de uma centena só na capital e o público costuma circular entre eles, quase sempre as mesmas pessoas. Eu queria quebrar esse ciclo. No Tietê, no vai e vem de gente de todas as partes, encontrei uma chance de respirar diferente, de renovar o público e alcançar quem nunca imaginou viver a experiência de um sarau.
E ali, entre malas, partidas e chegadas, descobri algo que me marca até hoje, a arte emociona até quem nunca procurou por ela.
E é por isso que agora eu aconteço no Terminal Rodoviário Tietê, uma vez ao mês. Meu corpo de poesia, música e histórias pulsa no meio do movimento, do relógio apertado, do anúncio dos embarques. Durante o meu sarau, tudo pode acontecer e acontece. Temos músicas, temos poemas, temos até dança, o improviso vira cena, a timidez vira coragem, e o público deixa de ser plateia para se tornar parte de mim.
Sou um lugar para participar, para contribuir, para existir junto. Não importa se é artista, viajante, trabalhador, estudante ou alguém apenas de passagem, aqui todo mundo cabe. Maria Ivone é prova disso. Ela estava ali, sentada com sua mala azul, aguardando o ônibus com destino à sua cidade, Cruzília, em Minas Gerais. Observava tímida, curiosa, como quem não sabe se poderia se aproximar. Até que, tomada por algo maior do que a hesitação, levantou-se e pediu o microfone. Recitou um poema com voz carregada de saudade, de vida, de estrada.Quando tudo terminou, havia algo diferente no ar, como se até o terminal estivesse mais leve. E foi então que eu percebi, de novo, que não é o cenário que define um sarau, são as pessoas.
O Terminal Tietê se tornou a minha casa mensal, onde eu encontro gente que talvez nunca tenha entrado em uma livraria, em uma biblioteca ou em um centro cultural. E ainda assim, quando me encontram, vivem a arte como se ela sempre tivesse morado dentro delas.
E eu não estou sozinho ali no terminal. Quando o grupo musical Os Ditos chega, tudo muda ao meu redor. Eles trazem alegria para dentro da rodoviária com sua música, e não é qualquer música, é aquela que chama, que convida, que abraça. E, conforme caminham entre o público, vão envolvendo cada pessoa que está ali: quem sorri tímido, quem olha curioso, quem finge não estar olhando mas está escutando, quem larga o celular só para prestar atenção.
Quando Os Ditos começam, eu sinto que o terminal inteiro respira de outro jeito. De repente, quem estava cansado encontra alívio, quem estava ansioso encontra pausa, quem estava sozinho encontra companhia. A música deles abre a porta para mim, e quando essa porta abre, ninguém fica de fora.
Eles são parte do meu corpo, da minha história, da minha voz. Com os instrumentos nas mãos e o brilho nos olhos, eles me ajudam a lembrar a todos que a arte não exige silêncio absoluto, sala fechada, luz baixa ou cadeiras enfileiradas. Ela acontece ali, no meio do movimento, no vai e vem, nas chegadas e despedidas. E quando Os Ditos tocam, mesmo quem não veio para mim acaba ficando.
E assim eu vou acontecendo, depois da música que abre caminhos, chegam os poemas, as leituras, as histórias que brotam de vozes diferentes, de vidas diferentes. Às vezes quem recita é alguém que já veio preparado, outras vezes é alguém que nunca imaginou subir diante de um microfone. Não importa, quando a poesia encontra coragem, ela sempre encontra espaço em mim.
E foi exatamente nesse clima que aconteceu aquela leitura que você vai ver agora no vídeo inserido aqui abaixo. Um poema que tomou forma ali mesmo, no meio do embarque, enquanto um ônibus partia e outro chegava. Um poema que fez o terminal parar, mesmo que por poucos minutos, para escutar.
Quando o último verso foi dito, o silêncio durou um instante. Não por falta de interesse, mas porque quem estava ali precisou de alguns segundos para absorver o que tinha acabado de acontecer. Só então vieram os aplausos firmes, espontâneos, seguidos de sorrisos e de olhares cúmplices, daqueles que dispensam explicações.
Momentos como esse explicam a minha existência. Eu aconteço a partir desses encontros inesperados, dessas emoções que surgem sem aviso, dessas descobertas que mostram que a arte não está distante, ela está ao alcance de qualquer pessoa, mesmo daquelas que acreditavam não ter espaço para ela
Eu fui criado para acolher e, com o tempo, entendi que também transformo. Enquanto houver alguém disposto a escutar, a falar ou simplesmente sentir, eu continuo.
E talvez, quem sabe, quem lê esta matéria um dia também venha me encontrar.
Todos os meses eu estou no Terminal Tietê.
No meio do fluxo, da pressa e das malas, sigo acontecendo.
Porque muita coisa muda.
Mas uma certeza permanece, a arte sempre chega a quem precisa dela.
Sarau dos Conversadores
Endereço: Terminal Rodoviário Tietê - Praça de Alimentação | Av. Cruzeiro do Sul, 1800 - Santana,
02030-000, São Paulo - SP
E-mail: saraudosconversadores@gmail.com
Instagram: @saraudosconversadores
Horário: uma vez por mês (edições mensais), a partir das 16h.
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Versos íntimos
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa ainda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Augusto dos Anjos
Eu. Rio de Janeiro, 1912.





Eu, Bosque: uma autobiografia do espaço de leitura mais antigo do Parque Ibirapuera
De 1983 a 2025, esse espaço de leitura atravessa décadas e concessões para provar que ainda tem fôlego
Por: Maurício Espíndola
Eu sou pequeno e discreto, quase uma casa de bonecas no meio da Praça Burle Marx. Fui construído para ser leve, aberto, democrático. Há quem me chame de “casinha”, e confesso que gosto, é carinhoso, lembra minha origem: uma utopia inaugurada em 3 de julho de 1983, quando São Paulo decidiu que livros também mereciam sol.
Naquela quinta-feira, vi alguém se aproximando de mim com passos hesitantes.Você vinha caminhando pela alameda, roupa leve, boné para trás, o cabelo cacheado meio amassado pela pressa; a mochila verde atravessada no peito, as mãos tremendo como quem segura o corpo com a força possível, ansiedade visível, mas também uma luminosidade discreta, a de quem está prestes a se apaixonar por alguma coisa. Sentou-se numa das minhas cadeiras de praia e ficou me observando por longos minutos, como quem tenta medir se eu ainda sou um equipamento cultural, ou apenas uma lembrança reformada.

A chegada e o silêncio que antecede a coragem
Ele me observava enquanto fingia analisar o horizonte. Eu sei reconhecer a timidez quando ela chega em silêncio, segurando o próprio peito para não deixar escapar a ansiedade. A postura curvada, o olhar atento demais para um visitante casual, e aquele tipo de curiosidade que não procura apenas descansar. Procura entender.
As cadeiras de praia rangiam levemente com o vento. Crianças corriam sobre os tapetes azuis ao meu lado; suas risadas se misturavam ao barulho dos pássaros. E eu, no centro de tudo, esperava. Já tinha presenciado isso outras vezes: jornalistas escondidos dentro do próprio corpo.
Foi apenas quando ele se aproximou da minha janela azul que eu percebi: ele queria me ouvir. E, sem saber, eu já estava pronto para falar, através de quem me tem há mais tempo do que qualquer gestão.
A testemunha do tempo: Seu Luís
Encostado no banco de madeira ao meu lado direito, com o corpo relaxado e as mãos firmes sobre o joelho, estava o homem que carrega mais da minha história do que todos os documentos oficiais reunidos: Seu Luís.
Ao contrário dos meus funcionários, ele não usa uniforme, crachá ou ficha técnica. Sua credencial é outra: a constância.
Enquanto o visitante acomodava o gravador no bolso, Seu Luís começou a contar:
“Isso aqui nasceu como uma ideia bonita, sabia? ‘Leitura no Parque’. Primeiro de São Paulo. Coisa de 1983. A prefeitura tinha a visão, mas dependia de patrocínio. Já começou meio frágil”, contou.
Ele tinha razão.
Eu nasci como um experimento inovador da Secretaria Municipal de Cultura, com apoio da DEPAVE e patrocínio da Hoechst do Brasil. Quiseram me fazer símbolo de uma nova forma de aprender: ao ar livre, misturado à vida do parque.
Fui bem recebido. Pouco depois, em 1993, ganhei o nome que carrego até hoje. Mas era só o começo, e o começo, às vezes, engana.
Seu Luís ergueu a sobrancelha e apontou com o queixo para as minhas paredes:
“Teve uma época em que isso aqui não servia pra nada além de guardar umas cadeiras de plástico e livros mofados. Quando chovia, chovia mais dentro do que fora”, relembrou.
Eu não contradigo, porque foi exatamente assim.
Durante quase vinte anos, fui esquecido. As goteiras me rasgavam; a umidade me devorava; o acervo, pequeno, ficava ameaçado a cada tempestade. As janelas empenadas eram o retrato do fracasso burocrático.
O que tinha começado com idealismo se tornou abandono silencioso, parte de um padrão maior de fragilidade que atingiu vários pontos de leitura da cidade nesse período. Eu era apenas um ambiente alternativo no papel, mas um depósito na prática. O motivo? Ninguém sabe.
Aqui, Seu Luís sorriu, pela primeira vez.
“Aí veio o pessoal do PIC… esses salvaram isso aqui. Fizeram milagre com zero recurso público. Botaram vida de novo”, explicou.
Ele se referia à Parque Ibirapuera Conservação (PIC), uma associação civil que, em 2014, firmou parceria com a Prefeitura.
Entre 2015 e 2020, eles investiram cerca de R$ 500 mil, trabalho doado, serviços voluntários e restauração completa.
Trocaram telhado, piso, elétrica, portas.
Limparam cada canto.
Me reergueram.
E mais: inventaram uma programação cultural vibrante, com teatro, cinema, contação de histórias, oficinas e encontros artísticos que formaram uma comunidade ao meu redor. Foram meus melhores anos.
Seu Luís confirmou:
“Vivia lotado. Criança, artista, família. Todo mundo vinha. Foi a primeira vez que isso aqui teve alma de verdade”.
E então ele suspirou, dessa vez sem sorrir.
“Aí, cortaram. Seco. Sem aviso. Fechou tudo”, disse sem raiva, mas com a exatidão de quem testemunha um erro.
A dissolução do PIC aconteceu em fevereiro de 2020, no momento em que o parque passava para a concessão da iniciativa privada. E como a nova gestão ainda não estava pronta para assumir este espaço específico, eu fiquei sem ninguém.
Sem voluntários. Sem funcionários. Sem cuidado. Sem voz. Foram mais de quatro anos fechado. A pandemia mascarou o silêncio, mas o silêncio aconteceu de qualquer forma.
Foi quando a voz do Seu Luís ficou mais baixa, quase como uma confissão:
“Agora está bonito, né? Moderno. Jardinzinho, espreguiçadeira, programação falando bonito, mas bonito também esconde coisa”.
Hoje sou um espaço reformado pela Urbia: integrado ao paisagismo, cercado de cadeiras de praia, com brinquedos infantis ao redor, paredes com desenhos das crianças, e uma programação que repete, quase palavra por palavra, o que o PIC fazia.
Junto à beleza, circula um rumor insistente:
“Falaram que isso aqui ia virar um café. E olha… se não fosse a briga dos funcionários daqui com a Secretaria de Cultura, já tinham levado”, contou Seu Luís.
Ele apontou com o dedo para a mesinha ao lado da minha entrada, onde repousa uma lista de assinaturas, pedindo apoio para que eu não seja transformado em comércio.
“Essa lista aí? É a prova. Se a gente não vigiar, muda tudo”, elucidou.
O visitante olhou para a prancheta, leu as assinaturas, passou o dedo devagar pelas linhas. Eu observei tudo. Reconheci, naquele gesto, quem entende que um espaço público só continua público quando alguém insiste que ele seja.
Enquanto anotava as frases de Seu Luís, que se negou a tirar foto, vi a mão trêmula do visitante se estabilizar. Ele fazia perguntas com voz baixa, mas firme. Olhava para mim com um misto de afeto e responsabilidade, não só como jornalista, mas como alguém que entende que todo equipamento cultural é também uma disputa política.
Seu Luís percebeu e comentou, quase num sussurro:
“Você tá vendo, né? Esse menino tá anotando até minha respiração. É bom. Tem que contar a história certa”.
E no fundo, era isso o que eu mais precisava: ser contado.

A minha história inteira, dentro de um pequeno espaço azul
Eu não sou apenas o que se vê: as cadeiras de madeira, as matas ao redor, o acervo de mangás e HQs, as crianças desenhando nas minhas paredes, o tapete azul para brincar, a cesta de livros para levar.
Eu sou: idealismo público, abandono burocrático, renascimento comunitário, conflito político, modernização corporativa e a eterna vigilância de quem me frequenta.
Eu vivi tudo isso, mas nunca pude contar. Quem contou foi o homem sentado ao meu lado. Quem registrou foi o jovem sentado na minha espreguiçadeira. E eu, pela primeira vez, só precisei existir enquanto alguém finalmente me ouvia.
Bosque da Leitura do Parque Ibirapuera
Endereço: Av. República do Líbano, 1151 - Portão 7 (ao lado do Viveiro Manequinho Lopes),
Ibirapuera - 04502-001 São Paulo, SP
Tel.: (11) 5514-6332
E-mail: bosquedaleitura@prefeitura.sp.gov.br
Horário: 2ª e 3ª das 8h às 16h; 4ª a domingo das 8h às 17h. Fechado nos feriados e emendas conforme calendário da prefeitura de São Paulo.

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Ressurreição
Não me caíram as ilusões como folhas secas que um débil sopro desprega e leva, foram-me arrancadas no pleno vigor da vegetação. Não me deixaram essas doces recordações que são para as almas enfermas como que uma aura de vitalidade. Meu espírito ficou árido e seco. Invadiu-me então uma cruel misantropia, a princípio irritada e violenta, depois melancólica e resignada. Calejou-se-me a alma a pouco e pouco, e o meu coração literalmente morreu.
Machado de Assis
Ressurreição, Editora Globo, Rio de Janeiro, 1872.





Ônibus de leitura: Eu, o Ônibus de Leitura
A trajetória de um veículo adaptado que leva livros, descobertas e sonhos a quem quiser embarcar.
Por: Henrique Muñoz
Eu sou o Ônibus de Leitura. Às vezes me chamam de Busão do Livro. Pode parecer estranho, mas sim, eu existo, um veículo cheio de histórias, estantes, imaginação e silêncio concentrado. Talvez você esteja se perguntando: como pode existir um ônibus de leitura? É exatamente isso que sou. Mesmo sendo ativado e desativado ao sabor das gestões da prefeitura.
A desativação do Ônibus de Leitura deixou um vazio difícil de medir. Não houve uma explicação clara sobre o motivo da interrupção, e a ausência de respostas oficiais da prefeitura reforça a sensação de descaso. Sem o ônibus, muitos leitores, especialmente crianças e moradores de bairros periféricos, ficaram sem acesso fácil aos livros, às atividades culturais e ao espaço seguro de leitura que o projeto oferecia. Para alguns, o ônibus era a única biblioteca próxima. O silêncio do poder público contrasta com o impacto real que sua ausência provoca, levantando perguntas que ainda esperam retorno: por que foi desativado? O que será feito para suprir essa falta? Algumas empresas e muitas pessoas não me deixam ser esquecido.
Sou um ônibus adaptado, que percorre bairros levando livros para quem quiser entrar, ler, descobrir e levar para casa. Meu motor pode até descansar, mas minhas páginas nunca param.
“Um espaço de incentivo à leitura, de despertar a imaginação e de viajar sem sair do lugar”
Explica Aline Costa, enquanto folheia, com cuidado, um livro de Machado de Assis. Ela sempre senta perto das janelas, onde a luz bate melhor, e as crianças às vezes param para ouvir trechos que ela lê em voz alta.
Éverton Pires, que conhece cada canto meu, explica com orgulho:
“É um projeto que incentiva a leitura nas regiões periféricas. Faz a ponte de levar programação, de levar o mundo artístico. O ônibus leva a literatura antiga e também a contemporânea: HQs, terror, suspense, autoajuda e livros infantis. As pessoas podem ler aqui ou levar pra casa, basta um documento com foto. Podem pegar até 3 livros e devolver em 14 dias”
Vejo Éverton organizar minhas prateleiras como quem cuida de um jardim. Sabe exatamente onde cada título costuma sumir mais rápido, quais retornam marcados por mãos inquietas e quais chegam novos, ainda brilhando.
Nicolas Ricardi, hoje adolescente, me conhece desde pequeno.
“Eu frequento o ônibus de leitura desde o terceiro ano do fundamental e é bem interessante a diversidade de livros. Tem filosofia, livros acadêmicos… Eu não costumava ler, mas hoje leio 5 a 6 livros por mês. Isso ajuda no vocabulário e no jeito de pensar”
Ele é apenas um exemplo entre muitos. Já vi crianças tímidas se tornarem leitoras vorazes. Vi adultos que nunca tiveram uma biblioteca por perto entrarem pela primeira vez apenas para “dar uma olhadinha” e saírem carregando um romance.
Como me encontrar?
Interlagos
Em Interlagos, fico na Praça Escolar – Cidade Dutra, ao lado de uma escola. É um ponto vivo: crianças saem correndo ao meu encontro, disputando quem vai pegar o livro mais desejado; adultos fazem uma pausa após o trabalho; senhores comem pastel ou acarajé na praça antes de me visitar. Ali, sou quase um velho conhecido de todos.
Santana
Em Santana, estou estacionado no Sesc Santana, um local cheio de atividades culturais. Ali, recebo leitores de todas as idades, desde jovens que passam após oficinas até famílias que aproveitam o fim de semana para circular pelo espaço.
Esses itinerários pertencem ao Bibliosesc, uma rede de unidades móveis que leva leitura a diversos bairros.
Apesar de eu ser apenas um dos ônibus, fazemos parte da mesma missão: manter a leitura viva e acessível.
Campo Limpo
Programação disponível no site do Sesc Campo Limpo.
Ali, recebo um público diverso: crianças que frequentam atividades esportivas, jovens que passam após a escola, pais que aguardam os filhos. Muitas vezes, a praça ao redor se transforma em um grande ponto de conversa e troca de indicações literárias.
Itaquera
A programação completa pode ser consultada no calendário oficial.
Alguns dos locais visitados:
-
E.E. Prof. Tito Lívio Ferreira
-
UBS Cidade Líder
-
CCA Santa Marcelina
-
Paróquia São Francisco de Assis
-
Metrô Guilhermina / Esperança
-
Parque Ecológico Chico Mendes
Em Itaquera, minha presença costuma atrair quem está de passagem rumo ao metrô, mães esperando atendimento na UBS e jovens do CCA. Muitos descobrem livros por acaso — e voltam.
São Caetano do Sul
Quartas, das 10h às 15h – EMEF 28 de Julho, Rua Oriente, 501 – Bairro Barcelona.
Datas: Abril 2, 16, 30 | Maio 14, 28 | Junho 11, 25 | Julho 23 | Agosto 6, 20 | Setembro 3, 17 | Outubro 25, 29 | Novembro 12, 26 | Dezembro 10.
Em São Caetano, costumo receber estudantes no intervalo das aulas. Alguns entram só para descansar um pouco da correria; outros se perdem entre as estantes e descobrem títulos novos.
Diadema
Quintas, das 10h às 15h – Céu das Artes, Jardim União.
Datas: Abril 3, 17 | Maio 15, 29 | Junho 12, 26 | Julho 10, 24 | Agosto 7, 21 | Setembro 4, 18 | Outubro 2, 16, 30 | Novembro 13, 27 | Dezembro 11.
Terças, das 10h às 15h – Centro Cultural Diadema, Rua Graciosa, 300.
Datas: Abril 8, 22 | Maio 6, 20 | Junho 3, 17 | Julho 1, 15, 29 | Agosto 12, 26 | Setembro 9, 23 | Outubro 7, 21 | Novembro 4, 18 | Dezembro 2.
Diadema tem um público caloroso. Ali, recebo muitos adolescentes que passam pelo CEU e senhores que aproveitam a manhã para caminhar e depois entrar só para “ver as novidades”.
Mauá
Quartas, das 10h às 15h – Casa do Hip Hop, Jardim Rosina.
Datas: Abril 9, 23 | Maio 7, 21 | Junho 4, 18 | Julho 2, 16, 30 | Agosto 13, 27 | Setembro 10, 24 | Outubro 8, 22 | Novembro 5, 19 | Dezembro 3.
Quintas, das 10h às 15h – Parque da Juventude, Vila Noêmia.
Datas: Abril 10, 24 | Maio 8, 22 | Junho 5 | Julho 3, 17, 31 | Agosto 14, 28 | Setembro 11, 25 | Outubro 9, 23 | Novembro 6 | Dezembro 4.
Em Mauá, a energia é contagiante: música de rua, crianças correndo, jovens que chegam do skate ou do basquete e param para escolher um livro. Poucos espaços misturam tanta diversidade assim.
Outros locais onde posso ser encontrado:
Campo Limpo, Itaquera, Santana, São Caetano

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Os Poemas
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante
em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti…
Mario Quintana
Esconderijos do Tempo, L&PM, Porto Alegre, 1980.






Vi você lendo, vi Piovezam: o olhar do jornalista que transformou o caos em leitura
De um extremo a outro, em todo lugar, Fernando Piovezam coleciona e compartilha um grande acervo de livros flagrados na correria da grande metrópole São Paulo
Por: João Guerrato
Nascido e criado na Zona Leste, no bairro de Itaquera, hoje mora junto com o marido Fábio Bernardes, que também participou desta entrevista, na mesma zona leste, onde tem suas raízes. Fernando carrega consigo uma missão poética, mas concreta: provar que apesar do mito e da correria, a cidade de São Paulo lê. Ele é a mente e o coração por trás do perfil no Instagram @vivocelendo, um projeto de fotojornalismo literário que, há quase uma década, registra passageiros imersos em livros e histórias das mais diversas no transporte público da capital paulista.
O pulsar frenético da metrópole, simbolizado pelo nosso encontro no Shopping Light, um local tão movimentado quanto às estações de metrô onde Fernando costuma fotografar, contrasta com a pausa íntima e silenciosa que ele busca documentar diariamente. Seu trabalho é um contraponto visual e reflexivo à dinâmica urbana, evidenciando que, mesmo "espremida, com o livro lendo", a população persiste no hábito de ler.
O início, inspirações e a presença dos livros
A trajetória de Fernando é marcada pela busca incessante pela leitura e comunicação, começando com uma formação em Letras (Português/Inglês) e Literatura, e depois em Jornalismo.
"Letras me deu subsídios para que eu trabalhasse o Jornalismo. Me ajudou muito”, explicou.
Sem condições de bancar a faculdade de Jornalismo, viu na Literatura um suporte que o ajudaria futuramente na área da comunicação. Graças a uma bolsa integral do ProUni, cursou Letras e, em seguida, formou-se em Jornalismo sem custos, aproveitando o benefício do trabalho que conseguiu na universidade.
Seu amor pelos livros começou na infância, com os gibis da Turma da Mônica, Machado de Assis e Clarice Lispector, sua maior admiração na literatura, passando muitas vezes pela revista Veja na adolescência. Esse apreço pela leitura foi a base de tudo:
"Sempre me interessei por ler. Gostava também dos clássicos: Machado de Assis, Clarice Lispector...Clarice Lispector para mim é meu xodó", conta Fernando.
Hoje, como profissional de comunicação, Fernando reconhece o papel fundamental de seus estudos:
“A leitura me ajuda muito nisso, na fluidez do vocabulário. E nós, jornalistas, precisamos muito dessa fluência", diz.
Segundo ele, a fluência, o raciocínio e a capacidade de se expressar foram aprimoradas pelo hábito de ler.
O transporte público como biblioteca
O perfil @vivocelendo nasceu da observação e da prática. Fernando, usuário diário do transporte público, notava a presença de outros leitores e começou a fotografar as capas dos livros para si, usando-as como dica indireta de leitura. Rapidamente, percebeu que aquele acervo vasto de fotos não poderia ficar restrito
a ele.
"Eu leio muito no transporte público, né? E vi que outras pessoas também faziam isso. E aí eu pegava as dicas de leitura dessas pessoas. Eu fotografava as capas dos livros, porque servia como uma dica indireta de leitura", conta.

Fernando e seu marido (Fábio), Linha Vermelha do Metrô São Paulo.
Foto: João Guerrato | Ano: 2025
Após criar um material vasto de fotos, pensou e concluiu: “Gente, não pode ficar só comigo essas fotos. Porque da mesma forma que me ajudaram com as dicas de leitura, né, de forma indireta, pode ajudar outras pessoas também".
O objetivo principal do projeto é o incentivo à leitura, atuando sem fins lucrativos:
"Eu não quero lucrar nada com o perfil. É mais o incentivo à leitura de fato. Não recebi nenhum retorno financeiro com o perfil. Nada. Zero".
O que mais o motiva são as cenas que flagram a resistência da leitura: "As condições que as pessoas estão lendo são muito precárias do transporte público. Isso me chamou muito a atenção, das pessoas que mesmo no aperto estão lendo".
Leitores fotografados no Metrô São Paulo.
Foto: João Guerrato | Ano: 2025
Fernando percebe que o paulistano, e o brasileiro em geral, "lê, mas lê pouco". Contudo, destaca que a variedade de títulos e presença de leitores na Linha Vermelha, que serve a Zona Leste, passando por bairros periféricos como: Itaquera e Arthur Alvim. E não apenas nas linhas mais centrais como a Azul, Amarela e Verde, localizadas em zonas nobres da cidade, rompendo com a ideia ultrapassada de que a periferia não lê.
"O pessoal da Linha Vermelha tá lendo também, não é só a Linha Amarela que lê. É a Linha Vermelha também que tá lendo", elucida.
Ao longo dos 10 anos que vem fotografando, Fernando desenvolveu uma técnica utilizada em seu dia a dia:
"O meu termômetro para saber se a lotação está muito cheia é quando eu consigo ler. Quando eu não consigo ler no transporte público, é sinal de que aquele vagão está muito lotado”, compartilha.
O projeto é um ato de curadoria e engajamento comunitário, que recebe fotos de diversas cidades e estados. Inicialmente, ele fazia as fotos sozinho, porém passou a contar com o apoio do marido, Fábio Bernardes, durante a pandemia, que hoje o ajuda a produzir parte do conteúdo.
O futuro: onde veremos quem te vê lendo?
Apesar de dedicado ao perfil, Fernando possui ambições profissionais na área televisiva, sonhando em trabalhar em redações de TV. A paixão pela escrita não se limita ao jornalismo: também há espaço para a literatura fantástica, um livro em produção com cerca de 200 páginas escritas, e o livro publicado O Reino do Laço Encantado baseado em suas sobrinhas. O processo criativo, no entanto, é regido pela inspiração.
"Eu não consigo escrever assim como uma obrigação. Para mim, eu tenho que estar inspirado a escrever. Não tem como eu pegar o computador, abrir, porque eu quero reler os capítulos também para saber se não tem nenhum gancho solto", explica.
Para Fernando, o futuro da leitura é certo: "O livro impresso não vai morrer. Vai sempre continuar a ter gente que gosta de ler". Sua recomendação à nova geração é clara: "Vão atrás de livros. Leiam por prazer, não por obrigação".
Outro viés da @vivocelendo destacado pelo jornalista é mostrar que apesar das condições adversas, muitas vezes encontra livros fora do mainstream literário, ou seja, o que está em alta.
"Muitas fotos que aparecem ali no perfil não estão na lista dos mais vendidos. Então a galera está lendo outro tipo de livro, outras Literaturas, além daquelas que são divulgadas nos veículos tradicionais", conta.
Encontrando o leitor oculto: os nichos do "Vi Você Lendo"
Fernando, notou padrões claros nas linhas de metrô:
Linhas com mais leitores: Azul, Amarela e Verde apresentam maior incidência de leitores.

No projeto, o mapa cultural da cidade ganha contornos curiosos: é no centro pulsante e nos bairros de alto padrão que a leitura parece encontrar seus redutos mais frequentes. Ainda assim, há um gesto de resistência e de justiça, em registrar também as mãos que seguram livros na periferia, onde cada página virada carrega um significado diferente.
A tecnologia até tentou sequestrar o hábito, mas não conseguiu apagar o cheiro do papel. Multiplicaram-se, isso sim, novas tribos literárias: os viajantes do Kindle, os que deslizam o dedo sobre um PDF no celular no meio do ônibus, e os românticos que não abrem mão de um volume físico, com capa, peso e história. Em cada canto da cidade, a leitura se reinventa e insiste.
O registro é, sobretudo, um retrato da diversidade. Entre um leitor mergulhado em Machado de Assis ou Clarice Lispector e outro devorando thrillers contemporâneos de Raphael Montes, há também quem se encontre nas páginas da autoajuda, nos textos espirituais ou em obras religiosas. A cidade lê de tudo e essa é, talvez, sua maior riqueza literária.

A relação de Fernando com a leitura vai além da profissão; é um prazer constante que ele busca instigar em outros. Ele mesmo busca se atualizar por meio de uma pluralidade de veículos como Folha de São Paulo, G1, Carta Capital, para evitar o enviesamento e a "bolha" de informações.
O papel de Fernando é provar que "A São Paulo que lê" é uma realidade vibrante, um fato que precisa ser valorizado e encorajado. Seu trabalho é um convite diário e silencioso, para que os paulistanos que mesmo soterrados pela pressa, busquem histórias e redescubram o prazer de ler em qualquer canto da cidade.













